Carla Alves leva a autarquia a tribunal após, alegadamente, ter-lhe sido retirado o posto de trabalho, ter ficado dias a fio a destruir papel e ter sido colocada numa sala com temperaturas de 40º C. Município refuta as acusações
Tudo terá começado em 2010. Carla Dias Alves trabalhava no Gabinete de Apoio ao Movimento Associativo da Câmara Municipal do Seixal e, segundo contou à VISÃO, apenas em setembro ter-lhe-ão sido apresentados os objetivos para esse mesmo ano. A funcionária terá constatado que não reunia condições para cumprir o que lhe era pedido, mas assinou, “com renitência”, o documento. Mais tarde, ter-se-á apercebido de que os objetivos não foram adequados aos meios de que dispunha e procurou agendar uma reunião com o vereador responsável pelo seu departamento, o então vice-presidente (hoje presidente do executivo local), Joaquim Santos.
O pedido, indica a funcionária de 50 anos, terá sido ignorado até à data-limite da avaliação, tendo Joaquim Santos revelado apenas abertura para a fundamentação do incumprimento dos objetivos. Só em abril de 2013 terá chegado o resultado da dita avaliação, “sem assinatura do avaliador”. Descontente, a trabalhadora recorreu a uma comissão paritária, que só viria a responder em maio de 2015, catalogando a reclamação como intempestiva e extemporânea.
A Câmara do Seixal nega que “não tenha havido predisposição para debater” e sublinha que a apreciação “resultou de dados objetivos e metas concretas”, tendo sido atribuída uma avaliação de desempenho “adequado” a Carla Alves. “A trabalhadora tomou conhecimento da avaliação, da homologação do relatório da comissão paritária e não reclamou nem impugnou o resultado da avaliação”, acrescenta a autarquia, numa resposta enviada por email.
Seja como for, Carla Alves considera que as represálias não mais pararam. Em 2012, ainda com Alfredo Monteiro ao leme do município, foi-lhe diagnosticada uma doença degenerativa que obrigou a que fosse submetida a uma cirurgia à coluna. Quando regressou ao trabalho, realça, deparou-se com a secretária despojada e ocupada por uma colega de outro serviço. O diretor do seu departamento viria a comunicar-lhe que seria colocada nas oficinas. Carla Alves relata, a esse propósito, que encontrou “uma sala cheia de ‘monos’”, com “deficiente funcionamento do ar condicionado” e um bastidor de informática que, devido às radiações emitidas, não deveria estar no mesmo espaço que os funcionários.
“O trabalho que me foi atribuído resumia-se à destruição de documentos que já deviam muitos anos ao lixo”, lamenta. Enquanto a sua saúde se deteriorava, as condições em que operava agravavam-se. As temperaturas no local de trabalho, enfatiza, terão mesmo atingido os 42º C, de acordo com uma medição do técnico do gabinete de saúde ocupacional. A câmara dirigida pela CDU desmente o mobbing laboral: “Desconhecemos que existam salas de trabalho com as condições relatadas e não podemos deixar de referir que a trabalhadora ocupou postos de trabalho em tudo iguais aos de outros colegas, tratando-se da única reclamação sobre a situação, só relatada em 2018.”
O “castigo” no canil
Em 2013, Carla Alves solicitou ser transferida para o posto de turismo. Foi aberto um concurso, mas não conseguiu o lugar. Só por via de mobilidade interna, em 2016, foi transferida para o Partido Médico Veterinário. Tradução da própria: “Puseram-me de castigo no canil, sem acesso a processos, nada… Nem uma caixa com um fundo de maneio… As pessoas chegavam com os cães, pagavam e o dinheiro ficava lá para cima…”
A autarquia não subscreve a tese: “A colocação no canil municipal ocorreu em resultado do deferimento do pedido de mobilidade interna apresentado pela própria trabalhadora. Aliás, a trabalhadora apresentou ao longo dos anos sucessivos pedidos de mobilidade, tendo estado afeta a vários serviços da Câmara Municipal do Seixal, em vários pelouros, coordenados por diferentes forças políticas eleitas no órgão executivo. Por exemplo, no caso do canil municipal, à data, tal serviço era coordenado por vereadores eleitos pelo PS.”
Desde então, a injustificação de faltas terá sido “constantemente uma das formas de tortura”. Mesmo de ausências motivadas por ações de formação promovidas pelo próprio município, períodos de férias e até dias em que se encontraria ao abrigo da junta médica da ADSE. “Tenho 19 faltas que me tiraram do ordenado, injustificadas, por motivo de doença! Onde é que já se viu isto?”, questiona, socorrendo-se de documentação que anexou ao processo que está em curso há um ano no Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada, que já mereceu, inclusivamente, a apresentação de um requerimento para que seja acelerado.
A versão da câmara, uma vez mais, é diferente. O executivo chefiado por Joaquim Santos nota que as faltas injustificadas “resultam da entrega dos certificados de incapacidade temporária fora do prazo”, pelo que a situação é da “exclusiva responsabilidade” de Carla Alves, acusada de ser uma trabalhadora com “elevado grau de absentismo”.
O alegado assédio moral, nessa fase, já tinha contaminado a relação de Carla Alves com os colegas. “É menos cruel ter assédio de cima para baixo do que passar pelos meus colegas – tendo noção de que nunca ninguém me apontou nada, de que nunca fui incorreta com ninguém – e não haver ninguém com quem tenha podido ou possa contar. Não houve ninguém! Ninguém! As pessoas afastam-se. Só posso contar com uma colega”, afirma.
Queixas aos sindicatos e ao PCP
Por tudo isso, recorreu ao Sindicato Nacional dos Trabalhadores da Administração Local (afeto à CGTP), ao Sindicato dos Trabalhadores da Administração Pública (UGT) e ao próprio PCP, do qual o máximo que obteve foi, em 2017, já após insistência, uma tentativa de marcação de uma reunião, segundo emails que a VISÃO consultou. “Eu sou militante do PCP e até tenho vergonha de ter na carteira o mesmo cartão que eles”, atira.
Entretanto, desde junho do ano passado, Carla Alves encontra-se em licença sem vencimento de longa duração por motivo de doença e a câmara municipal, queixa-se a funcionária, só comunicou esse facto à ADSE em novembro, já fora do timing devido. Resultado? Perdeu o direito a usufruir do subsistema, que a lei continuava a conferir-lhe, e só há um mês, conforme a própria demonstrou à VISÃO, pôde regularizar os descontos em falta.
Este episódio adensa as críticas de Carla Alves: “Sonegaram-me a informação de que podia continuar a descontar e a ter proteção na doença. Que proteção é essa em que estamos doentes e retiram-nos a própria ADSE?” A autarquia reduz a questão a um “lapso”, em relação ao qual diz ser “alheia”. “A trabalhadora encontra-se de licença sem remuneração e o sistema informático não assumiu como ativa a cobertura pela ADSE, mas a situação já se encontra resolvida”, fundamenta.
Quanto ao futuro, Carla Alves assegura que se sente “capaz” de voltar ao ativo. “Uma pessoa que não gostasse de trabalhar não se queixava por falta de funções como eu queixei e ficaria confortavelmente, salvo seja, naquela sala a destruir papel e a ganhar o ordenado”, observa. Ciente das dificuldades processuais que vai ter pela frente até que haja sentença, quer apenas que a Justiça seja célere. Mas avisa: “Quero jurisprudência! Ninguém vai comprar-me numa audiência preliminar. Não quero fazer um acordo com quem não me ouviu há oito anos. Até podem mentir e posso perder, mas quero que se sentem lá e mintam à minha frente.”